O mais importante dos dois órgãos que tradicionalmente se reúnem em sessão plenária por menos de duas semanas na primeira metade de Março é a Assembleia Popular Nacional (APN). No papel – ou seja, na Constituição – a APN é o órgão mais elevado do poder do Estado. Pode rever a Constituição, aprovar e rever leis, ratificar e revogar tratados, aprovar o orçamento de Estado e planos para o desenvolvimento económico e social, eleger e afastar os principais dirigentes do Estado e do sector judiciário (incluindo o Presidente), e fiscalizar o trabalho do Conselho de Estado, da Presidência, da Comissão Militar Central, do Supremo Tribunal Popular e Suprema Procuradoria Popular. Porém, como nota Susan Lawrence, “a APN exerce muitos desses poderes apenas na forma”, e tal deve-se em primeiro lugar ao facto de competir à APN meramente dar aval a decisões já tomadas pelo Partido Comunista – daí o epíteto frequente de que é “uma assembleia-carimbo”. Além disso, o partido nomeia todos os candidatos à posição de delegado – há ainda assim sempre mais candidatos que assentos disponíveis – e mais de quatro quintos dos delegados são também dirigentes do Partido e do Estado.
Ainda que aqueles que detêm cargos no Estado, no sector judiciário e na Procuradoria estejam impedidos de estar no Comité Permanente da APN, o órgão de topo que efectivamente conduz os assuntos da APN e se reúne a cada dois meses, o presidente do Comité Permanente da APN – actualmente, Zhang Dejiang – é também membro do poderoso Comité Permanente do Partido, e o terceiro em hierarquia de um grupo de sete membros actuais, atrás do Presidente, Xi Jinping, e do primeiro-ministro, Li Keqiang. Xi foi “eleito” Presidente da República em Março de 2013, mas antes tinha já sido designado como Secretário-Geral do Partido, em Novembro de 2012, e uma vez que a China não valida o princípio de separação de poderes – a pedra angular dos sistemas políticos das regiões administrativas especiais de Macau e Hong Kong, apesar da preponderância do Executivo – Xi é também membro da APN, tal como o primeiro-ministro.
A Conferência Consultiva Política do Povo Chinês (CCPPC) é a outra instituição que actualmente se está a reunir em Pequim e a sua natureza é bastante diferente, tendo apenas uma “função consultiva”. Em conjunto com oito partidos políticos menores, a CCPPC e as suas versões locais são aquilo que permite aos líderes da RPC caracterizarem o seu sistema político como tendo por base “a cooperação multi-partidária e a consulta política dirigida pelo Partido Comunista Chinês” – uma ficção que tem sido mantida viva desde os primeiros dias da RPC. Mas não é pelo facto da CCPPC não ter poderes e a APN estar subjugada ao Partido que estas duas instituições não são “centros de poder” por direito próprio. Ao examinar – e, em última análise, aprovar – orçamentos, relatórios de agências governamentais, e nomeações, os delegados da APN têm a possibilidade de se absterem “marginalmente” e assim exibirem uma forma de “abordagem pluralista” quando decidem aprovar apenas por menos de 80 por cento o relatório do Supremo Tribunal Popular ou o orçamento do Ministério das Finanças. Além disso, não é de negligenciar o papel que os delegados têm na defesa de algumas questões de interesse, não sendo raro assistir a fortes posições a favor do desenvolvimento de reformas nos vários sectores, incluindo nos trabalhos específicos da APN. E, porque os membros da CCPPC vêm de diferentes sectores sociais e são sempre figuras destacadas dentro da comunidade, podem ser aventadas propostas inovadoras e progressistas com respeito a políticas públicas, ainda que, em última análise, o Partido não tenha qualquer obrigação de agir de acordo com as sugestões apresentadas.
Os 12 delegados da APN que representam Macau – de um total ligeiramente inferior a três mil – e os cerca de 40 membros de Macau na CCPPC (incluindo os que representam interesses nas áreas da economia, trabalho e segurança social) de um total um pouco superior a dois mil têm por conseguinte um papel importante no futuro da nossa região administrativa especial. Em linha com as “quatro expectativas” propaladas por Xi Jinping durante a sua visita em Dezembro último – governar de acordo com a lei, diversificar a economia para promover o desenvolvimento sustentável, construir fundações sólidas para a estabilidade e harmonia sociais, e fortalecer a educação dos jovens – várias das declarações e sugestões feitas pelos delegados de Macau têm alimentado de forma positiva uma visão para Macau, o que faz com que estas reuniões comecem a aparentar ser muito mais do que meras oportunidades convívio social –, e, segundo as “oito directivas”, os habituais banquetes ensopados em Maotai tiveram de passar a dimensões mais modestas. Porém, durante as reuniões plenárias e de grupos, as “três expectativas” de Zhang Dejiang, bem como a preocupação manifesta de Li Gang com o significado real das enormes manifestações de Maio último em Macau – tendo em mente o movimento Occupy Central de Hong Kong – servem para nos lembrar que os nossos delegados têm por missão cumprir a tarefa inequívoca de promover a integração de Macau na RPC – daí que o caminho de diversificação seja descrito nos termos da cooperação regional e haja o repetido instar do “fortalecimento do Estado”. Muitos dos delegados andam nisto há muitos anos e, lamentavelmente, parecem ter entendido a admoestação das autoridades centrais como a necessidade de um maior alinhamento com a linha do Partido. Mas deve a resposta ser meramente restritiva e defensiva, especialmente quando Pequim deseja que as regiões administrativas especiais se mantenham atraentes e inclusivas? Infelizmente, um número importante de personalidades que assumirão a responsabilidade de responder aos desafios próximos consiste nas mesmas pessoas que demonstraram bastante impermeabilidade ao ritmo rápido de mudanças que estão a moldar uma sociedade mais complexa.
Published in Ponto Final, March 10 2015
And the original in English:
The yearly convening in full attendance of what is referred to as the “two meetings” (兩會) is an important moment in the political life of the People’ Republic of China (PRC). National and regional media, including our own in Macao, are devoting a significant number of pages to the gatherings. And this is not only true for the like of the People’s Daily: the entry page of the news section of Baidu, the dominant Chinese search engine that tackles 4 searches out of 5 in the Middle Kingdom, is presently enclosed with a clickable bright red doorframe portal adorned on top by a floating red flag, white clouds and a fading image of the red star converging swirl-like ceiling of the Great Hall of the People, the overlapping title in bright gold being simply “2015 Two national meetings” — not something you can easily imagine Google doing when the American Congress is in session.
The most important of the two bodies traditionally gathering in plenary session for less than two weeks during the first part of March, is the National People’s Congress (NPC). On paper — meaning the Constitution — the NPC is the highest organ of state power. It can amend the constitution, enact and amend laws, ratify and abrogate treaties, approve the state budget and plans for national economic and social development, elect and impeach top officials (including the President) of the state and judiciary, and supervise the work of the State Council, the Presidency, the State Central Military Commission, the Supreme People’s Court, and the Supreme People’s Procuratorate. However, as pointed out by Susan Lawrence, “the NPC exercises many of those powers in name only”, and the main reason is to be found in the very fact that the NPC merely has to give the nod to decisions already taken by the Communist Party, hence the sticking characterization of a “rubber-stamp assembly”. Additionally, the Party nominates all candidates for positions as deputies — there are nevertheless always more candidates than seats available — and more than four fifths of the deputies are also Party or state officials.
Even though people who hold state, judicial, and procuratorial positions are barred from serving on the NPC Standing Committee, the top body that actually conducts the affairs of the NPC and convenes every two months, the chairman of the Standing Committee of the NPC — presently Zhang Dejiang — is also a member of the powerful Standing Committee of the Party, and third in rank out of only seven members today after the President, Xi Jinping, and the Premier, Li Keqiang. Mr Xi was “elected” President of the Republic back in March 2013, but he had been previously designated as the General Secretary of the Party in November 2012, and because China does not validate the principle of the separations of power — the cornerstone of both the Macao SAR and the Hong Kong SAR political systems, despite being Executive-led — Mr Xi is also a member of the NPC, and so is the Premier.
The Chinese People’s Political Consultative Conference (CPPCC) is the other institution currently congregating in Beijing and is quite different in nature, having only a “consultative role”. Together with the eight minor political parties, the CPPCC and its local versions are what allow the PRC’s leaders to characterize their own political system as being based on “multi-party cooperation and political consultation led by the Communist Party of China” — a fiction kept alive since the very first days of the PRC. But it is not because the CPPCC is toothless and the NPC subdued by the Party that these two institutions are not “centers of power” in their own right. While examining — and ultimately approving — budgets, agency reports, and personnel appointments, NPC deputies have the possibility to “marginally” abstained and thus display a form of “plural approach” when they decide to only support by less than 80% the Supreme People’s Court’s report or the Ministry of Finance’s budget report. Additionally, the “advocacy” aspect of the deputies’ role is not to be neglected, and it is not rare to see strong stands being taken in favor of further developments of reform in all sectors, including the specific workings of the NPC. And because CPPCC members come from all-walk of life and are always prominent figures of the community, innovative and forward thinking proposals pertaining to public policies can be aired, even though ultimately the Communist Party has absolutely no obligation to act upon those suggestions.
The 12 NPC deputies representing Macao — out of a bit less than 3,000 in total — and the close to 40 CPPCC members from Macao (including the ones representing economic, labor and social welfare interests) out of a bit more than 2,000 thus have an important role for the future of our SAR. In line with the “four hopes” aired by Xi Jinping during his visit in December — grounding governance in the law, diversifying the economy in order to promote sustainable development, building strong foundations for social harmony and stability, and strengthening the education of the youth — several of the reports and suggestions made by the Macao delegates have nourished very positively a vision for Macao, thus starting to make these gatherings to look much more than mere social networking occasions — and under the “eight directives”, the usual Maotai-spilled lavish feasts had to be scaled down. Yet, during plenary and small group meetings, Mr Zhang Dejiang’s own “three hopes” as well as Mr Li Gang’s openly expressed worry about the actual significance of last May’s huge demonstrations in Macao — with now Hong Kong’s Occupy Central movement in mind — are reminders that our delegates are entrusted with a unequivocal duty in carrying out further the integration of Macao into the PRC — hence the diversification path described in terms of regional cooperation and the oft repeated urge to “strengthen patriotic education”. Many of the delegates have been around for many years and seem to have regrettably understood the admonition made by the central authorities as further towing the Party line. But can the answer be only restrictive and defensive, especially if Beijing wants the SARs to remain both attractive and inclusive? Unfortunately, quite a number of personalities who will take the responsibility of harnessing coming challenges are also the ones who have proven themselves to be quite impervious to the fast pace of change shaping up a more complex society.
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